terça-feira, 27 de março de 2012

Gota


Bastava observar para perceber que estava morto. Sentiu ainda um calafrio e passou a mão nas costas. Descia um líquido quente na fonte, não muito denso, que esfriava ao percorrer o sulco que o dividia em dois hemisférios, escorrendo acima do monte elevado dos quadris.
Não muito denso.
Apenas o suficiente para saber que aquilo era sua vida que se esvaía por um buraco maior que um poro.
Não muito densa, mas sua. Foi por aí que se deu conta do erro que havia cometido ao acreditar em sua infância curta:            
seus cordões umbilicais eram tantos, contudo tão frágeis.
Teve medo e morreu outra vez pensando quantas mais seriam necessárias até a anulação do que o olhar materno do mundo lhe apresentara como identidade. Também isso era desculpa, porque essas mortes, esse vagar e atravessar superfícies lhe provavam o contrário do ser: uma superfícidentidade falsa .
- E o contrário da própria identidade é o quê mesmo, hein? –
O fato de todos os outros homens estarem também mortos e obsoletos não lhe aliviava a angústia de existir daquela maneira.  Era jovem e morria sem que ninguém verdadeiramente notasse. Era mais fácil, então, aceitar:
não lutar, não se indispor.

Aquele momento em que, de tão vivo, sente-se plenamente a morte fluir pelo corpo, sair e voltar pelos poros, isso é plenitude de vida?
Sinto-me calçando sapatos de bebê, com um corpo visivelmente desajustado, sustentado pelos frágeis pés de uma criança. É um equívoco caminhar com esses pés, expor-me ao risco de romper a débil película que lhe chamam pele - mesmo que mal limite o contato com o tecido telúrico do mundo, com o chão tão carregado de vida pulsante.
É, sim, um equívoco forçar meu frágil alicerce com um corpo intransigente, relutante em aceitar sua condição, suportando um peso que não é seu, que não poderia nem mesmo ser...
Há um verde vivo e fresco entre mim e a terra úmida da qual sou constituído.
Há uma película bem fina de musgo vivo sobre o chão que piso agora, que piso pra sempre e que me sustenta,
embora haja pés e Eu entre mim  e a matéria sólida do mundo.
...

.Bato forte no teclado, como se – insubordinado -, me desobedecesse caso o tratasse muito brandamente.
Há três copos na mesa – que nem posso chamar de “Minha” -, bem ao lado do computador : cantam junto à vibração causada pelas pancadas.
Música seca.
                     - Seca como eu agora seco -.
Dou socos na mesa e ainda assim cantarolam os copos insistentemente, tratando de me convencer da necessidade de ser embalado por essa sinfonia ambígua: violenta e morta.
Preciso transfundir minha alma pra que eu me integre à vontade do mundo.
Desentendê-lo tem sido minha missão, lição de vida. Preciso barganhar minha coisa alma, trocá-la por algo menos intenso, tenso, cheio de coisas, de emoções. Minha forma está inflada de sentimentos que não possuo, por isso desentendo-os.
Quero estar numa alma ingênua, crédula, bem pegada à vida, ao comum e ao senso.
Quero, por isso, uma alma menos crítica - de vidro -,
que cante às pancadas que dá o giro do mundo.

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