Bastava observar para perceber
que estava morto. Sentiu ainda um calafrio e passou a mão nas costas. Descia um
líquido quente na fonte, não muito denso, que esfriava ao percorrer o sulco que
o dividia em dois hemisférios, escorrendo acima do monte elevado dos quadris.
Não muito denso.
Apenas o suficiente para saber
que aquilo era sua vida que se esvaía por um buraco maior que um poro.
Não muito densa, mas sua. Foi por
aí que se deu conta do erro que havia cometido ao acreditar em sua infância
curta:
seus cordões
umbilicais eram tantos, contudo tão frágeis.
Teve medo e morreu outra vez
pensando quantas mais seriam necessárias até a anulação do que o olhar materno
do mundo lhe apresentara como identidade. Também isso era desculpa, porque
essas mortes, esse vagar e atravessar superfícies lhe provavam o contrário do
ser: uma superfícidentidade falsa .
- E o contrário da
própria identidade é o quê mesmo, hein? –
O fato de todos os outros homens
estarem também mortos e obsoletos não lhe aliviava a angústia de existir
daquela maneira. Era jovem e morria sem
que ninguém verdadeiramente notasse. Era mais fácil, então, aceitar:
não lutar, não se indispor.
Aquele momento em que, de tão
vivo, sente-se plenamente a morte fluir pelo corpo, sair e voltar pelos poros, isso
é plenitude de vida?
Sinto-me calçando sapatos de
bebê, com um corpo visivelmente desajustado, sustentado pelos frágeis pés de
uma criança. É um equívoco caminhar com esses pés, expor-me ao risco de romper
a débil película que lhe chamam pele - mesmo que mal limite o contato com o
tecido telúrico do mundo, com o chão tão carregado de vida pulsante.
É, sim, um equívoco forçar meu
frágil alicerce com um corpo intransigente, relutante em aceitar sua condição,
suportando um peso que não é seu, que não poderia nem mesmo ser...
Há um verde vivo e fresco entre
mim e a terra úmida da qual sou constituído.
Há uma película bem fina de musgo
vivo sobre o chão que piso agora, que piso pra sempre e que me sustenta,
embora haja pés e Eu
entre mim e a matéria sólida do mundo.
...
.Bato forte no teclado, como se –
insubordinado -, me desobedecesse caso o tratasse muito brandamente.
Há três copos na mesa – que nem
posso chamar de “Minha” -, bem ao lado do computador : cantam junto à vibração
causada pelas pancadas.
Música seca.
- Seca como eu agora seco -.
Dou socos na mesa e ainda assim
cantarolam os copos insistentemente, tratando de me convencer da necessidade de
ser embalado por essa sinfonia ambígua: violenta e morta.
Preciso transfundir minha alma
pra que eu me integre à vontade do mundo.
Desentendê-lo tem sido minha
missão, lição de vida. Preciso barganhar minha coisa alma, trocá-la por algo
menos intenso, tenso, cheio de coisas, de emoções. Minha forma está inflada de
sentimentos que não possuo, por isso desentendo-os.
Quero estar numa alma ingênua,
crédula, bem pegada à vida, ao comum e ao senso.
Quero, por isso, uma alma menos
crítica - de vidro -,
que cante às pancadas que dá o
giro do mundo.
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