terça-feira, 31 de maio de 2011

:, parágrafrotravessãonaoutralinha:

Observando

Pela janela esquadrinhada a Moça observava as pessoas embaixo, na rua. Braços no parapeito, os olhos irrequietos. Refumava um cigarro já umedecido pela falta de ventilação duapartamentutrinteissetemetros.

- Que calor, não!

- Um Marlboro light...

Reparava no homem barrigudo, com camiseta de time; ele discretamente flertava com o careca do outro lado da Avenida Ipiranga, que em reposta ao patetismo da cena, acenava com a cabeça e confirmava a empatia com um sorriso ingenuamente sexy. Era só o que podia observar no momento, cansada que estava...

Cansada.

Só por se sentir assim é que engoliu todo o ar que pode. Se pudesse parar de respirar agora; só pra saber como seria morrer afogada. Essas coisas passeavam por sua cabeça sempre, às vezes.

Ela pararia.

Uma tosse seca coçou o peito e subiu à garganta tranquilizando-a: acendeu um cigarro e aceitou sua condição.

Pensava muito em morrer mas não era suicida. Não tinha vocação, como dizem. Outro dia quando chegava em casa, esbaforida, atrasada já pra seu compromisso com a janela, o porteiro lhe gritou o nome tão alto que ela estremeceu de horror. Achou que pudesse ter sido descoberta – como se houvesse algo a descobrir. Nada. Só queria lhe dizer que uma moça, 18 anos, tinha se jogado, pela manhã, do prédio vizinho.

A notícia era relevante, afinal. A Moça agradeceu e subiu. Enquanto esperava o elevador que a levaria ao terceiro pensava, também ela, em se jogar, fantasiando. Era tão boa nisso que chegou a sentir o frio intenso que dá na barriga e aperta todos os orifícios do corpo de alto a baixo quando a gente cai livre. Não achou boa ideia pular da altura de seu andar, pois corria sério risco de ficar ali, impressa como um ponto final: seu único medo, na verdade, era ser fim de frase pra sempre.

Daí desistiu.

Como se davam bem ela e a janela!

E pensar que pra alguns era só um quadrado: 1,60m x 1,20m. Pra ela era o único depois da porta e do vitrô do banheiro.

É que lhe excitava de verdade: ficava úmida e quente. Fazia verão na Moça quando ela via o mundo acontecer menor lá embaixo. Dizer que não tinha vida social, que não mantinha relacionamentos, que era misantropa, misofóbica (isso lá é palavra que se invente?), transformaria o mundo em uma frase, um só movimento, significando-o. Mas não. Seria um nascimento obscuro, voltado pra dentro: mentira: morre quando nasce, então não existe nunca.

A Moça, contudo...

Tinha até um namorado. Bem moço por sinal.

Era bem relacionada em seu mundo dois por dois.

Não gostava de ver tevê. Saía de manhã, lá pelas sete, a janela fechada. Voltava por volta das quatro e escancarava o lafóra pra si, dando de cara com uma árvore que, se de alguma maneira dificultava – mas não impedia -, a vista, por outro lado a defendia de eventuais olhares curiosos. Era assim não de outro jeito que via a coisa.

(Intermitência): repetidas vezes a mesma ambulância insistindo em convencer as pessoas da necessidade de serem salvas...

Abriu a porta lamentando terrivelmente o esforço dispendido na tarefa. Arrepiou-se toda, até o último fio com o barulho que fazia aquele peso arrastando no chão, marcando-o precisa e continuamente numa linha grossa e tão perfeitamente rabiscada que era quase obscena. A Moça era explícita em seu cansaço.

O careca e o barrigudo que tanto faziam. Se ela pulasse não deixariam de existir.

A Moça, contudo...

- Passa o Butantã aqui?

Foi a deixa, era do que precisava e a ideia cresceu em si quando decidiu que podia e devia desafiar-se. Pulou.

Daquela altura não pode prever o que talvez pudesse ter sido seu único equívoco: deu de cara com a porta do ônibus, imprimindo-se ali, de maneira que toda vez que subiam os passageiros arreganhavam-lhe toda para entrar no poeirinha.

No Redondo, do outro lado da avenida, Shayeni – até os 14 Rogério -, ria, regalada e arreganhadamente, ao perceber que no chão, provavelmente caídos da dona durante o salto, jaziam estilhaçados os óculos da outra.

Ela era míope.

Ego-Eco

Quando pensa que é, para:

estrala sem brilho nenhum

um pouco de coisa sem nome: tralha.

Não sabe?

Troça.

Num raio de trinta quilômetros,

acho.

Que coisa! É mentira?

É e não é: mentira é crer que ela existe, parece.

É-se?

Um acontecido
Meu corpo freme a cada uma das oito badaladas do sino.
Mentira.
É um prenúncio ansioso do qual não preciso para saber que vivo.
O cheiro da roupa mal seca e a naftalina do armário quase vazio me fazem sentir fisicamente no mundo de maneira menos hostil. As horas se anunciam na Igreja da Consolação sem saberem para quê. Deve ser porque é assim, o sino, metal solicitamente pronto. Precisa ser tocado. Parece notar que, desse jeito, acontece mais às pessoas, como se lhe desse um prazer indescritível lembrar-me, insistentemente, a desgraçada invenção da morte predita.
As horas a menos.
O vento corta ao meio os doze apóstolos que permanecem impassíveis diante da vida que acontece frente aos seus olhos de pedra. Ainda não sei ao certo o que devo escrever porque isso que acho ser uma estória vai me acontecendo aos poucos. Não sei se conto do menino que caminhava próximo à Praça da República, ou do corpo pesado e disforme da mulher que voltava cansada do trabalho para casa e que eu provavelmente nunca mais verei. Pouco, ou nada, importam essas pessoas para a realidade dos outros transeuntes; vendida como numa feira-livre por um preço que é o do espetáculo do nascimento.
Sem aplausos.
O fato é que não consigo me desvencilhar de toda essa gente.
Ainda penso na mulher que, esgotada, atravessava a Rua da Consolação. Voltava com pressa, como se alguém a estivesse esperando, mas ouso dizer que ninguém aguardava seu retorno.
Era só cansaço.
Vontade de burlar o tempo que leva pra chegar em sua casa, posicionar-se menos contra a euforia de estar diante do outro. O menino que caminhava próximo à praça o fazia de maneira distraída, afinal, não estava ali por gostar do lugar ou das pessoas que andam desesperadamente cinzas pelo local. Suas condições: ser menino, sujo, e estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
Pra sempre.
A minha é somente observar e nada fazer senão sentar-me à janela e, por meias-palavras, tentar discorrer sobre o pecado que só é porque posso notá-lo em mim e que, portanto, me condena quando cruzo o meu olhar com o do menino sujo e viciado.
Oito anos.
O mundo peca menos, pois não nota a gravidade do que é estar nele; não cruzar olhares com a vida que...
Aconteceu:
Não penso mais no menino ou na mulher como figuras de uma existência contínua ou atemporal que se prolongam além daquele momento. Muito ao contrário, essas pessoas só aconteceram pra mim durante aquele instante. Tenho a nítida sensação de que o mundo é menos coisa quando não o vejo, progressivamente, acontecendo em cada ponto. Então sei que a mulher ainda está atravessando a rua, olha a Igreja e segue seu caminho, Deus sabe para onde... Aconteceu apenas. O que há no momento é só o fundo branco, imenso, do existirmenos, no qual mergulham essas figuras datadas.
Um limbo que surge como intervalo: o ator fora de cena...
Assim, datado para o outro, aconteci hoje sozinho.
Eu.
Não fui por ninguém sorvido a despeito de ter possuído outros corpos numa sinestesia de gente. É a minha penitência: existir. Estar resignado, de alguma maneira, é o meu existir. Conformar-me com o contemplar apenas. Não sou corpo de agir. Sou corpo de imitar e satisfazer-me com isso. Essa percepção do estar no mundo é como um câncer que se espalha aos poucos e, assim, aos poucos, dói em diferentes partes da pessoa. O que tenho em mim são palavras e não ideias. Palavra pestilenta, vomitada pelo outro através de mim.
Eu me transformo na mulher que ainda atravessa a rua como numa jornada sem fim. Morde uma maçã e nisso descobre o saber-se existindo. É a maçã que rompe o branco e não a pessoa da mulher que, ao invés de perder-se na imensidão do tempo que não é, da vida além do que meus olhos percebem, percebe que é gente só porque tem fome. Na cabeça dela gente é aquilo que sabe - simplesmente sabendo -, que a maçã é boa e que se come e que o limão é azedo e por isso não pode lhe dar sensação ininterrupta de vida. O limão só pode causar arroubos de existência. Um estalo muito rápido. Com a maçã tem-se a prolongação do existirse .
Que loucura, meu Deus! Às vezes tenho a impressão de que o limão é que é a realidade! O que é a maçã senão uma mentira colorida?
Vermelho, brancoamarelado.
Não há como descobrir-se verdadeiramente através de uma ilusão doce. Demasiadamente doce para a realidade. O limão é o que nos desperta para a vida acontecida.
Azeda.
Contorcida.

Fruta, contudo.
Não há senão o limão!