segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Sobre o futuro, ou estar-se à frente:


Essa noite acordei com esperança de que amanhã seja um melhor dia.

Não por reclamá-lo, mas por vivê-lo.

Se hoje penso que posso sabê-lo, assim de antemão, é porque a ele não me entrego: engano. Não me o vivo. Como não me o vivo amanhã.

Sopro e vejo o mundo revelar-se em eminência.

Só prevejo-o.

Certamente não me ocuparei do que não posso sê-lo. Cansado de uma altura - que é também a minha, mas que não me a vivo.

Que é que há de mágico no mundo? Sua categorização é vanidade.

Vaidade debaixo do sol

que rege, acalenta, mas também oprime.

É o sol que nos torna vãos, vaidosos. Não dele, mas por ele.

Aquele homem à minha frente - tão senhor de si, catedrático, chancelado com a mais alta galhardia -, não conhece o sol e, assim mesmo, sem dar-se conta, subestima o Astro.

Uma gota quente caiu-me bem no estômago.

Era - também ela -, um pouco de sol. Pude senti-la aquecendo as paredespregas de um espaço que eu mesmo não seria capaz de reconhecer se me o pusessem à frente.

O epitélio superficial, cilíndrico simples, mucosecretor sem células caliciformes, recobre criptas rasas, de forma estrelada: fovéolas gástricas.

Temo que o futuro seja assim: um estômago em minha cara sem que eu seja capaz de identificá-lo como meu - apesar das possibilidades de reconhecimento do calor que um dia me preencheu as vísceras de alto a baixo.

Não sou vísceras apenas. Sou todo corpo e movimento.

Desejei prender-me, assim: conter talvez a tepidez de uma gota visceral que - por ansiedade -, quis alcançar com as mãos e desisti diante da impossibilidade de ter cinco dedos internos que me a fizessem senti-la, quente, nas minhas falanges sem digitais.

Forcei-me a tocar com as tripas a parcela de calor que me cabia naquele instante. Desisto quando, na rua, à minha frente, um homem caminha com seu guarda chuva preto, defendendo-se de uma chuva fina que não deveria, jamais, ser detida, impermeabilizada. Entendo - a partir disso -, que não devo me defender. Tocar a gota é defender-me do calor que protege o que em mim não se me pode entender: o que se me escapa

O dia era cinza, mas bastante claro. As gotas caíam frias e finas sobre o guarda chuva: chiavam como uma tevê dessintonizada. Sob a haste de ponta abaulada e preta um homem concebia uma prece de agradecimento ao instante, à Possibilidade

: ser triste e consciente.

Conivente com o que é belo e com o que dele escapa – como se não aceitasse o amor irrefutável que se lhe é dedicado por compaixão. O feio e o belo não se fogem. Contêm-se na sorte de uma vida apenas: a do homem que caminha à minha frente

: guarda-chuva preto, tecido sinológico; reconhecendo faces sem juízos, despindo-as do belo e do feio. O homem estaca à minha frente ao passo que eu também, sem notar, perco as forças e deixo de seguir.

- Olho ao redor - ,

tentava perceber outros passos além dos meus e dos do raro senhor à minha frente. Não há ninguém no lugar àquela hora, somos nós apenas. Quando me dou conta disso percebo que algum tempo já então passou

– isso é o futuro?

não tenho mais a companhia do homem que duvidava do sol, a não ser pelas pernas que sustentam meu cansado corpo, do guarda-chuva preto de tecido sinológico em minhas mãos e do chiado insistente das frias gotas da chuva que persistiam na tarefa de me lembrar que o dia era cinza, mas bastante claro e que , portanto, não se me acontecia dessintonizado.