domingo, 1 de maio de 2011

Observando

Pela janela esquadrinhada a Moça observava as pessoas embaixo, na rua. Braços no parapeito, os olhos irrequietos. Refumava um cigarro já umedecido pela falta de ventilação duapartamentutrinteissetemetros.

- Que calor, não!

- Um Marlboro light...

Reparava no homem barrigudo, com camiseta de time; ele discretamente flertava com o careca do outro lado da Avenida Ipiranga, que em reposta ao patetismo da cena, acenava com a cabeça e confirmava a empatia com um sorriso ingenuamente sexy. Era só o que podia observar no momento, cansada que estava...

Cansada.

Só por se sentir assim é que engoliu todo o ar que pode. Se pudesse parar de respirar agora; só pra saber como seria morrer afogada. Essas coisas passeavam por sua cabeça sempre, às vezes.

Ela pararia.

Uma tosse seca coçou o peito e subiu à garganta tranquilizando-a: acendeu um cigarro e aceitou sua condição.

Pensava muito em morrer mas não era suicida. Não tinha vocação, como dizem. Outro dia quando chegava em casa, esbaforida, atrasada já pra seu compromisso com a janela, o porteiro lhe gritou o nome tão alto que ela estremeceu de horror. Achou que pudesse ter sido descoberta – como se houvesse algo a descobrir. Nada. Só queria lhe dizer que uma moça, 18 anos, tinha se jogado, pela manhã, do prédio vizinho.

A notícia era relevante, afinal. A Moça agradeceu e subiu. Enquanto esperava o elevador que a levaria ao terceiro pensava, também ela, em se jogar, fantasiando. Era tão boa nisso que chegou a sentir o frio intenso que dá na barriga e aperta todos os orifícios do corpo de alto a baixo quando a gente cai livre. Não achou boa ideia pular da altura de seu andar, pois corria sério risco de ficar ali, impressa como um ponto final: seu único medo, na verdade, era ser fim de frase pra sempre.

Daí desistiu.

Como se davam bem ela e a janela!

E pensar que pra alguns era só um quadrado: 1,60m x 1,20m. Pra ela era o único depois da porta e do vitrô do banheiro.

É que lhe excitava de verdade: ficava úmida e quente. Fazia verão na Moça quando ela via o mundo acontecer menor lá embaixo. Dizer que não tinha vida social, que não mantinha relacionamentos, que era misantropa, misofóbica (isso lá é palavra que se invente?), transformaria o mundo em uma frase, um só movimento, significando-o. Mas não. Seria um nascimento obscuro, voltado pra dentro: mentira: morre quando nasce, então não existe nunca.

A Moça, contudo...

Tinha até um namorado. Bem moço por sinal.

Era bem relacionada em seu mundo dois por dois.

Não gostava de ver tevê. Saía de manhã, lá pelas sete, a janela fechada. Voltava por volta das quatro e escancarava o lafóra pra si, dando de cara com uma árvore que, se de alguma maneira dificultava – mas não impedia -, a vista, por outro lado a defendia de eventuais olhares curiosos. Era assim não de outro jeito que via a coisa.

(Intermitência): repetidas vezes a mesma ambulância insistindo em convencer as pessoas da necessidade de serem salvas...

Abriu a porta lamentando terrivelmente o esforço dispendido na tarefa. Arrepiou-se toda, até o último fio com o barulho que fazia aquele peso arrastando no chão, marcando-o precisa e continuamente numa linha grossa e tão perfeitamente rabiscada que era quase obscena. A Moça era explícita em seu cansaço.

O careca e o barrigudo que tanto faziam. Se ela pulasse não deixariam de existir.

A Moça, contudo...

- Passa o Butantã aqui?

Foi a deixa, era do que precisava e a ideia cresceu em si quando decidiu que podia e devia desafiar-se. Pulou.

Daquela altura não pode prever o que talvez pudesse ter sido seu único equívoco: deu de cara com a porta do ônibus, imprimindo-se ali, de maneira que toda vez que subiam os passageiros arreganhavam-lhe toda para entrar no poeirinha.

No Redondo, do outro lado da avenida, Shayeni – até os 14 Rogério -, ria, regalada e arreganhadamente, ao perceber que no chão, provavelmente caídos da dona durante o salto, jaziam estilhaçados os óculos da outra.

Ela era míope.

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